Onde Desaguar
Ninguém viu quando me tornei sombra,
nem quando o silêncio me vestiu.
Fui partícula esquecida no véu do tempo,
uma pergunta à deriva no escuro.
Havia em mim o relâmpago contido,
o grito que nunca encontrou eco.
Mas o abismo me ensinou a escorrer,
e eu desaprendi o fogo.
Agora sou um rio manso,
onde desaguar não é fim,
mas rito secreto de retorno
àquilo que nunca se foi.
Nas minhas margens, as vozes se curvam.
Nas minhas águas, a dúvida dorme.
Quem me toca, perde os nomes.
Quem me segue… se esquece.
Sou o caminho que não leva,
a calma que engana,
a promessa que sussurra:
“Vem — e desfaz-te.”
Onde Desaguar — Parte II
Sou o que resta quando tudo se vai.
A última brisa depois da tempestade esquecida.
Carrego em mim os segredos dos que partiram
sem dizer adeus,
e os suspiros dos que ficaram… calados.
Não me busques em mapas.
Sou desvio, sou margem que some.
Meu leito é feito de ecos,
e minhas águas sabem o que tu negas.
À noite, os astros se curvam sobre mim
como olhos antigos, vigilantes.
Sabem que não sou o rio —
sou o sussurro que o rio aprendeu a guardar.
E aqueles que ousam mergulhar
não voltam os mesmos.
Voltam com o olhar vazio de certezas
e o coração cheio de perguntas.
Pois em mim, não se nada —
desliza-se.
E todo aquele que tenta conter-me
é levado…
para dentro de si.
Onde Desaguar — Parte III -
(O Fim que Se Dissolve)
Fui tormenta, fui vertigem.
Hoje, sou apenas fluidez.
Mas não te enganes com minha calma —
há relâmpagos dormindo no fundo.
Agora sou um rio manso,
mas levo impérios soterrados,
memórias que afundaram sorrindo
e nomes que o tempo esqueceu pronunciar.
Às vezes, no silêncio entre duas margens,
sinto tua presença —
como se fosses feito da mesma ausência que me molda.
Talvez sejas também água disfarçada de corpo.
Desagua em mim, se ousares.
Não como quem busca um porto,
mas como quem aceita o naufrágio
como forma de voo.
Pois eu não ofereço chegada,
nem consolo,
nem forma.
Apenas o eterno desdobrar do mistério
que és tu
encontrando a si mesmo,
num espelho que escorre.
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