24 novembro 2008

A FUGA

(O Outro Lado da Poesia)

Ela fugiu do quarto-e-sala sentindo-se vazia
Pisando nos cacos que cortavam seu sentimento.
Sua casa fria sempre lhe parecera doentia.
Estava descalça e a rua era de chuva e vento.

Logo ali, depois do meio-fio, havia a floresta:
De casas, e asfalto, e pontes, e viadutos, pensava
Que naquele lugar seus sentidos estariam em festa
Porque ali moravam todas as feras, imaginava.

Rezou, de joelhos, aos seus anjos, e quase chora.
Rezou aos santos guerreiros e às santas benditas,
Para que se fizessem presentes naquela hora,
Perdulários com milagres diante da sua desdita.

Que entrassem rápidos e sem entraves
Em suas grades interiores, e pisando leve
Libertassem-na de seus padecimentos graves
E que a deixassem sorrindo em breve.

Quando ela fugiu, sentiu-se aliviada e liberta,
Livre e ligeira, ligeiramente liberada.
Acabara de fazer sua última descoberta:
Vivera sempre em lágrimas e fora por nada.

Foi então que finalmente encontrou seu eu
E se imaginou em toques que alguém lhe dera
E trocou o tempo e pensou que alguém lhe deu
(os toques) nos cabelos e era apenas uma quimera.

Os toques pela pele, pela cor e pelos pêlos,
Pelos tantos despropósitos que viveu em vão,
Pelos nervos de ferro, pedra e cubos de gelo
Que jamais deixaram de atingir seu coração.

Quando fugiu, correu na fuga e não olhou pra trás,
Correu, sentindo-se completamente nua
E se sentou em frente ao seu próprio cadafalso,
E nem percebeu que sentara ali na rua.

Na fuga ainda a esperança de sentir em si um olhar
Um carinho, um beijo, ou dois, ou três e até mais,
Até se sentir olhada, acariciada, beijada de enfastiar,
Até encontrar dentro de si um recanto de paz.


E veio um choro que saiu em lágrimas, aos borbotões
Até seus olhos se sentirem vazios das piedades,
Dos ressentimentos, dos cosméticos, dos bordões,
Até se livrar de todas as suas iniquidades.

As lágrimas, como chuva, encharcavam o corpo doído
Queimavam a alma, ardiam em ânsias de se encontrar,
Quebravam o silêncio com um choro espremido.
Gritou como ostra para que se fizesse notar.

De pé sobre o piso frio a decisão estava tomada:
Queria ouvir seus passos atravessando a avenida
Seu olhar encontrou o vazio do pulo, transtornada.
Calçada, amurada, pulo, vontade vencida.

E o salto, ressalte-se, não era assim tão alto,
Tanto que o baque surdo de corpo no asfalto
Não foi ouvido nem mesmo pelas redondezas,
Somente ali, além do seu mundo de incertezas.

Havia sangue, mas a mancha estava disfarçada.
Envolta em seus silêncios foi encontrada
Afogada em sonhos a poucos metros do nada,
Que era o destino da sua fuga desesperada.

Vicente
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"Desconfia da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas."
(Mario Quintana)
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01 novembro 2008

ENCHENTES


derramei um pouco de mim
em você.
um pouco que não é um copo
nem taça
nem cálice
algumas gotas do mais puro eu
para não esquecer o que sou

foi o momento do adorno
do refestelar desejos vazios
preenchidos de presença e ventre
em meio aos cheiros e suores
e troca de essências
cujo codinome é DNA.

foram as gotas que me trouxeram
à memória abandonada
um riso de vento doce
que encurta distâncias
e faz nascer esperanças
de se voltar ao mesmo lugar
e novamente derramar
até que vire enchente.
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Vicente
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