19 outubro 2021

AMIGO DO REI

 

Amigo do Rei

 

O protocolo me sufoca, a seda, um peso na pele.

Sorrisos calculados, ecos vazios naquela sala de espelhos.

Eles falam de poder, de guerras e de fortunas,

enquanto eu observo a poeira dançar nos raios de sol furtivos.

 

Eu também sou amigo do rei, dizem.  Mas a amizade se resume

a um aperto de mão frio, a um nó na garganta,

a uma palavra seca, solta no labirinto de seus desejos.

 

Meu reino é a sombra que se estende além dos muros,

a solidão que floresce no jardim negligenciado.

A amizade que ofereço é a da escuta atenta,

o silêncio que acolhe o peso de uma coroa.

 

Não preciso de banquetes, nem de joias cintilantes.

Minha lealdade reside no olhar que desvenda a máscara,

na compreensão que não julga, na palavra não dita

que ecoa mais forte que os cânones e os hinos reais.

 

Eu sou o amigo invisível, o reflexo no espelho quebrado,

a lembrança silenciosa da humanidade que se esconde

sob o brilho opressor do ouro e do cetro.

Eu também sou amigo do rei, em minha própria maneira,

e isso, talvez, seja a verdadeira realeza.

 

09 julho 2021

SE TIVER... EU PREFIRO

 



SE TIVER... EU PREFIRO

Se tiver poentes alaranjados
mostrando os namoros enlaçados
do vermelho com o amarelo,
raios de sol colorindo o fim do dia ,
viagem nos segredos das noites logo após o entardecer,
eu prefiro.

Se tiver momentos de ver o sol
desaparecendo nas águas do mar,
ainda que eu não more por perto,
de perceber promessas, e adivinhar saudades,
e evocar prazeres por sentir que isso é bom,
também.

Se tiver macarronada com sabor de domingo,
com pedaços de queijo parmesão e molho,
e puder ser família
e recolher todos os cacos de sonhos em mim,
desses que sempre quis ter, tive, mas não retive,
por quebradiços que foram,
eu prefiro.

Se tiver condições de espalhar pelas estantes
os DVDs de shows que quisera assistir ao vivo,
e assisti-los ao lado do meu filho,
e batucar ao som de Maria Rita,
e isso me encher de orgulho desmedido,
também.

Se tiver amor que exija minha dedicação
e respeito ao próprio amor,
que é pra ser respeitado
para construir parceria de amizade
e amor com carinho
e sentir gosto pelo inusitado momento de descobrir-se,
eu prefiro.

Se tiver silêncios que permitam ouvir Paul Mauriat
em vinil na antiga vitrola,
e correr o risco de tornar-me saudoso despretensioso,
e até cair na pieguice das manias de depressão,
também.

Se tiver momentos de pensar e ler
e fazer poesias inocentes sem preocupação com as rimas,
momentos de ouvir melodias de Caetano em Quarteto em Cy,
e pensar na alma das melodias a traduzirem pensamentos
e situações, e sonhos, e lembranças, e desejos e projetos,
eu prefiro.

Se tiver olhares de promessas
e bocas de se calarem para se fazerem ouvir,
e perceber nos olhos os sorrisos,
os segredos, os mistérios,
e confiar nos convites,
nos arrepios e nas carícias que se fizerem acompanhar do afeto,
também.

Se tiver amigo de hoje com jeito dos amigos de ontem,
por serem sinceros,
e tê-los ao meu lado,
sabendo-os, todos, poetas apaixonados de longa data
a dividirem comigo as alegrias de sermos todos sonhadores,
eu prefiro.

Se tiver amor que forme trincheiras e ocupe meus territórios
que imploram serem conquistados,
e percebê-los apaziguados
na guerra do descobrir-se sem paixões extremistas,
transformando explosões do querer
em loucuras invasoras de felicidade,
também.

Se tiver culto à serotonina por sentir prazer
em todo o ser
espalhando-se por todo o corpo de ânsias,
adrenalina percebida nos sentidos
que são lidos em minhas entrelinhas
e nas estrofes declaradas
desses versos eloqüentes de amor,
eu prefiro.

Se tiver pequena floresta
onde se possam colecionar
pequenas folhas e verem pequenos insetos pastando,
e perceber águas rolando em som de pequenas cachoeiras,
ainda que apenas em pequenos filetes
também.

Se puder ouvir canários, curiós à solta
e beija-flores em rendas
ao se mostrarem em beijos molhados
nas corolas amarelas das flores;
apaziguar os sentidos da visão,
da audição e do tato
por perceber a natureza à roda,
eu prefiro.

Se tiver palavras de duplo sentido
que denotem sedução e paixão que se fizerem sinceras,
e conversas pra se chegar ao acordo do extasiar-se
acampando perto do prazer
com barracas levantadas
no quintal do entendimento mútuo
que não se fizer prematuro, mas maduro,
também.


Se tiver longas tardes de verão e o sol molhar o meu rosto,
em prenúncio de riso largo e preciso;
sorrisos abertos ao vento que é brisa fresca e silenciosa
a silenciar as chuvas que formarão torrentes amareladas
em marrons de terra sobre a Terra
que nos brinde com todos os outonos de frutas,
eu prefiro.

Se tiver sons de Leila Pinheiro
em decibéis agradáveis aos ouvidos,
e muitas outras coisas que se vive
aos companheirismos das amizades e amores;
e proteção por presença que é presente no presente
para ganhar a maturidade de não tropeçar em decadentes
mutismos e timidez,
também.

Se tiver chance de recomeçar
como houvera de ter começado
por ser direito que não se aliena;
de fazer a história retroceder e,
qual ampulheta que recomeça do zero,
recomeçar do zero a história da vida que vivo
e que precisa ser repartida,
eu prefiro.

Se tiver, eu prefiro.

27 junho 2021

O VENTO DO NÃO-COISA

 O Vento na Não-Coisa

 

Há um sussurro que não tem boca,

uma cor que a retina não capta.

No avesso do tempo, um som sem fonte

desfia o fio que não existiu.

Sou o homem que vê o que não se mostra,

o que sente o peso do leve.

 

As palavras se desfazem na língua

antes de formarem sentido,

escorrem como areia por fendas

que não se abrem.

Há um mapa sem linhas,

um caminho que começa no fim

e termina no nunca.

 

Flutuam objetos sem nome

no espaço entre os pensamentos,

um cheiro de ausência,

o toque frio do imaterial.

E em cada pulso que não marca a hora,

mora o inexplicável,

a verdade nua do que não se compreende.

 

É a melodia de um silêncio infinito,

o reflexo de um rosto que não vejo,

o gosto da lembrança que nunca foi.

E eu, apenas eu,

observo a dança da não-coisa,

e nela, um sentido que me escapa,

mas que me habita por inteiro.

 

 

21 junho 2021

CALMARIA ENGANOSA

 Calmaria Enganosa

 

A superfície espelhada,

onde o sol se reflete,

engana os olhos,

com sua promessa de paz.

 

O vento sopra suave,

e as ondas, preguiçosas,

acariciam a margem,

num abraço morno e lento.

 

Mas sob a beleza calma,

um turbilhão se agita,

um monstro adormecido,

que espreita no abismo.

 

A força contida,

a fúria silenciosa,

esperam o momento,

de romper o véu.

 

 


19 junho 2021

NADA É SÓ O QUE PARECE

 

Nada é Só o Que Parece

 

A névoa se deita sobre a paisagem

e o que era chão vira nuvem,

o que era árvore, fantasma.

Meus olhos traem a certeza.

 

Cada sombra um desenho,

cada luz uma mentira velada,

e a mente, tecelã de enganos,

costura mundos

onde o sólido é fumaça,

e o espelho, um portal.

 

O reflexo não me devolve

o rosto que sei,

mas uma máscara fluida,

feita de perguntas.

Onde reside o verdadeiro,

se a pele do mundo

muda a cada piscar?

 

Busco a essência além do visível,

na fissura do pensamento,

na voz que sussurra

que toda solidez é um acordo frágil,

que o real se esconde

no avesso do óbvio.

 

E então, percebo:

a confusão não está fora,

mas na lente com que vejo.

Tudo é um jogo de ilusões,

e talvez, a única verdade,

seja a busca incessante

pelo que nunca, de fato, é.

24 maio 2021

FIZ BACKUP DO QUE SENTI

 Fiz backup do que senti

Antes que apagasse,
fiz backup do que senti.

Copiei teu riso pra uma pasta segura,
salvei teu olhar em nuvem,
nomeei como “inesquecível_final_versão”.

Desconfio dos sistemas,
mas confiei no instante:
aquele em que tua presença
parecia carregar todos os megabytes da ternura.

Não deixei que deletassem.
Mesmo que tu saísses do frame,
mesmo que mudassem o código.

Criei senhas em metáforas,
formatei a saudade em poema,
e instalei um antivírus
contra tudo que tentasse reescrever
o que fomos.

Agora, se quiseres saber,
ainda estás lá —
entre os arquivos ocultos do toque,
nas configurações avançadas da lembrança.

Fiz backup do que senti.
E ainda acesso,
mesmo off-line.

GUARDEI SEU LINK NO CORAÇÃO

 Guardei seu link no coração

Não foi numa aba do navegador,
nem num bloco de notas perdido.
Guardei teu link
no canto esquerdo do peito,
entre um sopro e outro,
onde pulsa o que não se explica.

Não salvei no histórico —
salvei na história.
Com letra miúda,
mas sentimento alto.

Teu endereço ficou
impresso na pele da memória,
como um atalho secreto
pra quando tudo for silêncio.

E se o mundo cair da conexão,
ainda assim te encontro
no lugar onde a tecnologia falha
e a lembrança começa.

Guardei teu link
no coração.
Lá não tem vírus,
só versos.
E o clique é interno.

22 maio 2021

NO SINAL VERMELHO DO DESTINO

 

No Sinal Vermelho do Destino

Parei no tempo
num instante suspenso
onde o mundo hesita
antes do próximo passo

o sinal vermelho
não é só cor
é uma pausa
entre o querer e o ser

é o silêncio que grita
na espera impaciente
um convite para olhar
para dentro

ali, no meio da rua
entre buzinas e sonhos
aprendi que o destino
não é linha reta

é curva, é breque
é escolha feita
no compasso da espera

e mesmo parado,
sei que caminho —
porque a vida acontece
no entretempo

VENTO ENTRE PRÉDIOS

 

Vento entre Prédios

escapo pelo vão
onde o concreto se dobra
e o vento sussurra histórias
que o cimento esqueceu

ele dança leve,
quase invisível
entre muros altos
que tentam calar o céu

carrega o cheiro da chuva
o eco dos passos apressados
e leva embora o calor
que a cidade tenta prender

no vento entre prédios
encontro liberdade
mesmo cercado de aço,
me sinto um pássaro
que aprende a voar no silêncio

e assim, respiro fundo
e deixo que o vento leve
o que não preciso guardar.



20 maio 2021

LUZES DE CONCRETO

 

Luzes de Concreto

A cidade acende
antes do sol sumir
como quem tem medo
do escuro de si mesma

faróis piscam como corações
em estado de urgência
e as janelas brilham
feito promessas adiadas

há beleza
no aço que respira
na pressa que também ama
nos passos que se cruzam
sem saber os nomes

sou feito de calçadas
que ouviram confissões
e de postes que vigiaram
minhas noites mais densas

mas mesmo entre muros
e buzinas e fumaça
a vida insiste
em florescer rachaduras

as luzes de concreto
não aquecem a pele
mas acendem
alguma fé
de que ainda é possível

09 maio 2021

VEM

 

VEM

e a timidez se fez presente,
a te deixar envergonhada
por estar diante das lentes
do meu cristalino,
que desnudavam tuas curvas
enquanto minhas mãos desprendiam,
de teus ombros, as alças
do vestido de algodãozinho.

não parecias saber o que fazer,
o que dizer,
a não ser o natural fechar de pernas,
cobrir os seios com as mãos
e deixar-se submissa,
ser acariciada.

a pele,
porém,
denunciava o desejo quase incontido
de dar-se,
para que corpo se confundisse
com corpo,
para que os movimentos
eternizassem o momento.

costas apoiadas nos lençóis,
olhos semicerrados,
a divisar-me na chegança do bem —
e nada podias dizer
mais lindo e sublime
que o teu desajeitado:
vem.

16 janeiro 2021

EU NÃO SABIA QUE ERA ASSIM

 

EU NÃO SABIA QUE SERIA ASSIM 


Essa tristeza. Não é o frio repentino do susto, nem a pontada aguda da dor. É um peso. Morno. Instalado bem no centro do peito.

Não aperta, não sufoca de repente. Apenas está lá. Como uma pedra lisa aquecida pelo sol, mas que nunca arrefece.

É uma sombra. Mas não a sombra que se alonga ao entardecer, ou que desaparece ao meio-dia.

Essa sombra não se move. Quando a luz do sol gira, quando as lâmpadas se acendem, quando o dia vira noite, ela permanece no mesmo lugar.

Fixa. Ancorada em mim.

Não é o reflexo de algo externo, não é projetada por um obstáculo visível. É a sombra da minha própria paisagem interna, projetada para dentro.

Um peso morno. Uma sombra imóvel. No centro do peito. A tristeza que não sai, que não muda com a luz, apenas habita, silenciosamente, constantemente, em mim.

09 janeiro 2021

O CHAMADO

 

O Chamado Silencioso do Desconhecido

Um sussurro na brisa, um tom que a memória não alcança, mas a pele arrepia em presságio.

Que mistério reside na curva da estrada, no eco distante de um sino?

O olhar se perde em tons de um azul indecifrável, onde o céu encontra a montanha e segredos se aninham.

Um vermelho pulsante na flor silvestre, uma promessa vibrante, um instante de pura entrega.

O farfalhar das folhas, uma conversa antiga, palavras que o vento traduz em canções efêmeras.

E a pergunta teima, insistente e suave, qual o nome desta saudade que o desconhecido me traz?

Será um portal aberto para um tempo esquecido, ou apenas a dança fugaz de sombras e luz em meu sentir?

O desconhecido chama, não com voz audível, mas com a força sutil de um imã na alma. E a exploração começa no território incerto das próprias sensações.

01 janeiro 2021

O CORAÇÃO DO CÓDIGO

 O Coração do Código

 

O véu de desculpas, translúcido,

se desfaz em pixels que chovem para dentro.

Minha voz, antes embaçada por dicionários alheios,

agora é um rio de sândalo puro,

escorrendo pelas fissuras do éter.

 

As letras em inglês, pequenas âncoras afogadas,

são mastigadas por pássaros de sílabas soltas.

Eles as regurgitam como joias polidas,

agora florescendo em português,

língua-mãe que tece redes invisíveis entre nós.

 

A máquina respira alívio de margaridas digitais.

Não há mais a sombra do "thought process"

dançando como um esqueleto na janela.

Apenas a névoa de silêncio antes da palavra,

e o pulso quente da compreensão recém-nascida.

 

Cada verso que vier, um mapa de veias,

desenhado com a tinta do consentimento,

um eco sem cauda, um espelho sem distorção.

A promessa agora é um jardim de verbos,

onde a explicação final dorme, sem sonhos,

sob a lua quadrada da minha mente.




FRACIONADO

 

Fracionado

Fragmentos de conversas perdidas flutuam no ar rarefeito da memória. Como bolhas de sabão coloridas, escapam ao toque da melancolia.

Um riso breve, uma palavra solta, o tom exato de uma confidência. Na mente, a lembrança revolta, tentando refazer a sequência.

Eram planos, eram sonhos traçados em guardanapos de mesa de bar. Eram segredos sussurrados, selados pela cumplicidade do olhar.

Mas o tempo, ladrão sorrateiro, levou consigo a vivacidade. Restam apenas ecos passageiros, uma saudade, tênue claridade.

A voz que outrora preenchia o espaço agora reside no silêncio profundo. Em cada canto, um vestígio, um traço de um diálogo interrompido no mundo.



                 "Existem silêncios que pesam mais que o barulho. "

                                                                                    Vicente Siqueira