05 maio 2025

DOMINGO DE MÃE

 

Domingo de Mãe

Hoje, o sol nasceu com cheiro de abraço,
e o tempo se vestiu de colo.
É domingo —
mas não é qualquer domingo.
É o dia em que o mundo se lembra
do nome mais antigo do amor.

Mãe é quem carrega
não só o peso,
mas a dança da espera.
É quem sonha com os olhos da gente
e dorme com os olhos abertos.

No silêncio da madrugada,
é reza e vigília.
Na bagunça do dia,
é ordem disfarçada de cuidado.

Mãe é jardim que floresce mesmo quando a terra está seca.
É poema que se escreve
com a vida inteira.

Hoje, cada gesto é um altar:
um café na cama,
um beijo na testa,
uma saudade que aperta no peito de quem só pode lembrar.

Feliz Dia das Mães
às que estão,
às que partiram,
às que cuidam com mãos visíveis
ou invisíveis.
O amor de mãe
é semente que nunca morre —
mesmo quando o tempo passa,
ela ainda floresce
dentro da gente.




04 maio 2025

INFINITO MENU

 

Infinito menu

Tenho mil opções
e nenhuma fome.

abro o aplicativo,
deslizo, escolho, cancelo.
repito.

a liberdade pesa
quando tudo parece possível
e nada parece certo.

o mundo me oferece caminhos
com algoritmos sorridentes,
mas cada decisão
é uma perda disfarçada.

fico parado,
não por falta de vontade,
mas por excesso de portas
sem chão visível atrás.

às vezes invejo o concreto,
o definitivo,
o que não dá pra desfazer com um swipe.

me sento no sofá
com a televisão ligada
só pra ter a sensação
de que algo está andando.

mas não sou eu.


 

Segunda aba

Vivo como quem deixa a vida
aberta numa aba secundária.
não fecho,
mas também não clico.

estou aqui,
mas de fone.
respondendo com gestos mínimos
pra não ser confundido com ausência.

meus dias passam como comerciais
que não prestei atenção.
às vezes me pego existindo
no automático —
modo silencioso da alma.

tenho medo de que
me acostumar com isso
seja pior que a dor.

a vida vai acumulando poeira
num canto da consciência
e só percebo
quando tropeço
no próprio vazio.



 

Sem espanto

Na ausência de espanto,
as manhãs se repetem
como senhas digitadas sem pensar.
o sol entra pela janela
não como revelação,
mas como rotina.
luz que cumpre horário.

levanto, escovo, visto, ando.
não sinto — executo.
me tornei um script,
um conjunto de comandos
rodando em segundo plano.

quando tudo vira protocolo,
até o afeto perde o cheiro.
abraços são cumprimentos,
olhares são confirmações de leitura.
ninguém mais se pergunta o porquê,
só o quando.

e nessa vida enxugada,
onde até a tristeza tem etiquetas,
fico esperando o acaso —
um tropeço na lógica,
um erro do sistema
que me lembre
como era
sentir sem manual.




 Gente que não chegou

De manhã, abro a janela
como quem espera alguém.
mas nunca tem ninguém.
nem mesmo eu, às vezes.

o espelho já não me reconhece tão rápido.
me olha com dúvida,
como se dissesse:
"você de novo?"

passo o dia entre tarefas automáticas,
potes que guardam sobras,
emails que começam com “espero que esteja bem”
e ninguém quer saber se estou.

há um tipo de solidão que mora
na ausência de espanto.
quando tudo vira protocolo,
e até o choro tem horário pra acontecer.

ando pela casa
como se esperasse uma visita —
uma versão de mim
que talvez tenha se perdido pelo caminho.

e toda noite,
deito do lado esquerdo da cama
deixando espaço
pra gente que não chegou.


 

Meus brinquedos ainda estão lá

Lembro de um quarto pequeno
com um abajur torto
e brinquedos desalinhados como eu.
ninguém me ensinou a brincar acompanhado.

o tempo era um bicho manso,
me olhava pelos cantos
enquanto eu montava mundos
com pedaços de silêncio.

cresci com essa voz interna
que sempre sussurra
quando tudo se cala.
ela veio comigo —
não cresceu,
só ficou mais quieta.

hoje ando por ruas largas
com o mesmo vazio do tapete azul,
e às vezes acho que a solidão
não começou agora —
ela só foi ganhando nome,
senha,
roupa de adulto.

meus brinquedos ainda estão lá,
em alguma gaveta do tempo,
esperando que eu volte
pra reaprender a companhia
sem pressa,
sem rede,
sem medo de estar só.


 

Coração modo avião

Às vezes a solidão
não é ausência de gente,
é excesso de mim.
um eco que se cansa da própria voz.

me sento no chão da sala
sem propósito,
como se o chão fosse mais honesto
do que qualquer cadeira ergonômica.

o mundo lá fora gira
com seus algoritmos precisos,
e aqui dentro
eu travo.

não por falta de wi-fi,
mas por falta de toque.
nenhuma chamada perdida,
nenhuma presença achada.

penso em mandar mensagem,
mas o que se diz quando não se sabe
nem o que se sente?

então silencio tudo.
desligo o olhar.
deixo o coração no modo avião
pra ver se ele aterrissa em algum lugar.


Entre parênteses

Ninguém mais bate à porta.
só notificações.
o mundo virou um lugar
onde a presença se mede por status online.

minha solidão
não é romântica,
não tem vinho,
nem chuva na janela.

é seca,
com luz de LED e micro-ondas,
com eco no pensamento
e ausência até no espelho.

me acostumei com a antítese modorrenta
de estar cercado e só —
abraços virtuais,
silêncios que digitam “...” e depois somem.

às vezes falo alto
pra ter certeza de que existo,
mas a casa não responde,
só respira, indiferente.

solidão assim nem dói direito.
é só uma espera morna,
uma presença ausente
que senta comigo no sofá
e muda de canal sem avisar.


 

Modo economia de alma

Respondo com "haha"
pra não ter que explicar o cansaço.
marco presença onde meu corpo vai,
mas minha alma entra no modo economia.

o toque virou emoji,
o afeto, uma figurinha repetida.
ninguém mais pergunta "tudo bem?"
pra escutar de verdade.

às vezes quero sumir da própria cabeça,
fingir que não tô em mim,
ver se assim sobra espaço
pra existir sem manual.

a antítese modorrenta me ronda:
quero sentir tudo e nada,
quero o caos e o silêncio,
quero fugir sem sair de casa.

então silencio o celular
e espero que a vida
me mande uma notificação
com algum sentido.



Notificações em silêncio

Acordei com a sensação
de que algo não começou.
ou começou errado.
ou sou eu que ainda estou no rascunho.

a cidade vibra no modo avião,
gente andando depressa pra lugar nenhum,
com olhos que deslizam na superfície das coisas.
como quem aceita o contrato sem ler.

penso demais e ajo de menos.
é a antítese modorrenta da minha era:
urgência e apatia
num feed que nunca dorme.

entre um café morno e uma meta não batida,
me pergunto:
quando foi que desaprendemos a pausa?
o afeto com acento,
o toque sem atalho?

queria me desligar sem morrer,
desaparecer só pra ver
quem ainda sentiria falta
de alguém que nunca esteve todo.



 Antítese Modorrenta

No vão da tarde entediada,
quando o sol boceja preguiça,
dança lenta a ideia alada
com a razão que nunca se atiça.

É quando o verbo se contradiz
sem pressa, sem convicção —
uma briga que pede bis
no silêncio da contramão.

Antítese modorrenta,
palavra que se espreguiça,
que vive entre o sim e o não
sem querer tomar notícia.

O claro flerta o escuro,
o grito se deita no sussurro,
e o tempo, meio surdo,
esquece o próprio curso.

Nessa rima meio morta,
nessa lógica sonolenta,
tudo é tudo e nada importa
na antítese modorrenta.



 Poesia suave para nossa amizade

era como uma liturgia,
onde o tempo se aquieta,
e o silêncio se torna melodia.

Cada palavra, um toque leve,
nos gestos trocados, sem pressa,
um canto sem necessidade de ser ouvido,
mas que se faz presente em cada presença.

Era o rito do olhar que se entende
sem palavras, um encontro profundo,
como se estivéssemos em um templo secreto
onde o mais simples gesto se tornava profundo.

A amizade, assim, era oração sem fim,
onde o sagrado não precisava ser dito,
mas vivido, em cada silêncio compartilhado,
em cada risada que se transformava em canção.

E eu sabia que, mesmo nos dias cinzentos,
nossa liturgia seria refúgio,
como a suave brisa que toca o rosto
e nos faz sentir o coração mais sereno



 Cupins, Lambaris e a Cobra

Quando eu era criança
morava onde o mato tem cheiro de vento
e o tempo, cor de ferrugem.

Eu e meu irmão —
esse que o tempo levou antes que eu quisesse —
caminhávamos juntos pelos campos
à procura de cupinzeiros,
maciços de terra
onde a infância cavava o mundo.

Rasgávamos o barro com enxadas
para colher iscas vivas,
cupins miúdos
que depois virariam movimento na água,
anzol no córrego,
pequena alegria na ponta da linha.

Um dia,
a terra respirou mais fundo.
E do ventre seco de um cupinzeiro antigo
surgiu uma cobra.

Não era venenosa —
mas não sabíamos.
Não soubemos.

O susto falou por nós,
e nossas mãos de meninos
golpearam o que parecia ameaça.

A cobra morreu ali.
Dentro da própria casa,
sem entender o motivo,
sem ter a chance
de se recolher.

Hoje,
sessenta anos depois,
aquela terra ainda me pesa nas mãos.
A cobra às vezes me olha
dos cantos da memória,
sem raiva —
mas com um silêncio
que me atravessa.

Não foi crueldade,
foi ignorância.
Mas a vida que se perde sem razão
grita,
mesmo no mais fundo arrependimento.

E é por isso que volto,
em sonho,
ao cupinzeiro quebrado,
não para caçar,
mas para pedir perdão
àquilo que jamais quis ferir.



 O Que É Verdade

Porque tudo que é verdade
resistirá sempre às trevas —
não por força,
mas por raiz.

Mesmo quando soterrada,
ela respira por baixo
como semente paciente,
esperando o instante certo
de romper o chão.

A verdade não se apressa.
Ela aguenta o esquecimento,
o escárnio,
os gritos falsos
que tentam abafá-la.

Mas um dia,
ela cresce.

E alcança
o mais alto pedestal —
não para se exibir,
mas para iluminar
o que estava oculto.

E ali permanece,
não como troféu,
mas como farol:
silenciosa,
intocável,
inteira.



 Debaixo da Pele

E a imensa delicadeza
se escondia por debaixo da pele —
quieta, como segredo de criança,
como flor que teme o vento.

Não queria ser notada,
não queria virar explicação.
Só desejava continuar sendo
instantes felizes,
daqueles que chegam sem aviso
e partem sem culpa.

Viviam ali:
no arrepio sutil,
no riso que quase não nasce,
na lágrima que não escorre.

Era o dom de sentir
sem fazer barulho.
De caber em silêncios,
em pequenos gestos
que o mundo costuma esquecer.

E mesmo escondida,
ela brilhava —
porque tudo que é verdade
sempre encontra um modo
de ser luz,
mesmo por dentro da pele.


 O Lugar Onde a Alma Não se Curva

Dizem que no fim da Travessia do Vento,
depois da última torre que nunca lança sombra,
existe um ponto suspenso —
invisível aos olhos que temem.

Ali,
a alma deixa de se curvar.
É um lugar sem chão,
mas também sem queda.
Uma dobra no tempo onde tudo o que já foi dor
vira linguagem antiga
e o corpo aprende a caminhar
sem precisar se ajoelhar.

Chegam ali os que foram partidos,
os que amaram até virar pedra,
os que carregaram séculos nos ombros
sem nunca entender de onde vinham os pesos.

No instante em que pisam esse ponto —
feito de luz esquecida —
algo acontece:
as promessas não cumpridas se desfazem,
os nomes antigos perdem som,
e o olhar reencontra sua origem.

Nenhum mapa leva até lá.
Só se chega quando se perde o último medo
de não ser aceito por ninguém.

E então, no silêncio que vem,
a alma se ergue.
Não por orgulho,
mas porque se lembrou
de que foi feita para voar.


 

Zero

A tolerância será sempre igual a zero —
não por falta de amor,
mas por excesso de verdade.

Há um ponto em que a alma
não se curva mais.
Não por orgulho,
mas por ter entendido
que o chão também cansa
de ser pisado.

Ser tolerante é, às vezes,
abrir portas demais
e esquecer de fechar as próprias janelas.

E então o vento entra.
E leva o que era abrigo.

Aprendi:
há coisas que não merecem mais espaço,
nem mais desculpas,
nem mais esperas.

Porque o respeito não se pede,
se percebe.
E o silêncio —
quando vem depois de muito ruído —
é uma espécie de justiça.

Sim,
a tolerância será sempre igual a zero
quando a dignidade
for menor que o medo.



 O Belo Sem Moldura

Como explicar
o belo que não precisa de moldura,
se o cuidado se dissolve
na ignorância das coisas simples?

O botão que desabrocha
sem testemunhas,
a gota que insiste em cair
de um galho esquecido —
são mais belos
justamente porque não pedem olhos.

Há beleza no que escapa,
no que não se entende,
no que vive sem saber
que está sendo visto.

Mas o gesto de moldurar,
de preservar com zelo,
é também uma forma de amar —
mesmo que falhe,
mesmo que a beleza fuja
no instante seguinte.

Talvez o segredo
seja aceitar:
há beleza que só existe
enquanto passa,
e cuidado que não salva,
mas toca.

E isso, no fundo,
já basta.


 

As Galinhas no Quintal

No meu quintal
as galinhas teimavam
em pastar a grama bem cuidada.

Não sabiam das regras,
nem do esforço que é manter
o verde aparado,
a ordem dos canteiros,
o capricho invisível das manhãs.

Elas apenas bicavam —
livres,
descabeladas,
em sua própria lógica
de procurar o mundo com o bico.

E havia algo nisso
que me espantava e encantava:
a maneira como ignoravam
o que eu chamava de controle,
e insistiam em viver
sem roteiro.

Naquela desordem alada,
com seus passos descompromissados,
me ensinavam algo
sobre o cuidado que se dissolve,
sobre o belo que não precisa de moldura,
sobre a liberdade de não entender.



 Eu Não Estava Ali

Nem eu mesmo percebi
que eu não estava ali.
Respirava, sim —
mas era o mundo que respirava por mim.

Passei por mim como se passa
por uma porta fechada,
sem sequer tentar a maçaneta.

Não me encontrei.
Não me chamei.
Não sentei comigo à mesa
nem perguntei se havia fome.

Não houve conversa,
nem escuta.
Apenas ruído,
como um rádio esquecido num quarto vazio.

E então doeu —
doeu o que não foi dito,
o que não fui.

E percebi que o que eu queria,
mais do que qualquer resposta,
era me ouvir.
Só isso.
Me ouvir, enfim,
sem me interromper.



 A Prosopopeia Mais Delicada

A minha prosopopeia mais delicada
não gritou —
sussurrou entre galhos de silêncio
o que o medo não quis ouvir.

Descobriu, com a ponta dos dedos,
que o nada
mora no começo do que sou,
feito nascente tímida
em terreno esquecido.

Ali, onde nem eu ousava entrar,
ela encontrou
um fio de luz
passando por entre os vãos
da incredulidade.

E disse, com doçura:
"É aqui que começa."

Perto das vertentes
que eu mesmo sugeri
ao incrédulo que habita em mim,
ela desenhou um mapa
feito de ausência,
e me ensinou a caminhar
sobre o que não sei.




 Perto do Nada

Entrei e saí
por vários caminhos
que diziam meu nome
sem me reconhecer.

Dobrei esquinas do tempo,
pisei em passos antigos,
procurei vestígios de mim
em rostos que não eram espelhos.

E de tanto não me encontrar,
reparei:
estava em lugar algum.

Um quase-lugar,
feito de neblina e lembrança,
onde os muros não se firmam
e as portas não sabem fechar.

Ali,
onde o silêncio se alonga
como sombra sem dono,
descobri que o mais próximo de mim
era o nada.

E que talvez —
só talvez —
nesse nada morasse o começo
do que sou
sem saber.


 

Quando o Corpo Silencia

Mas se o corpo silenciar-se —
de verdade,
como quem adormece sem medo,
como quem pousa a última palavra
num chão que não exige resposta —
a alma certamente escutará.

Escutará o que vem de longe,
de antes,
de dentro,
como uma água subterrânea
que sempre esteve ali.

O som não é som.
É presença.
É vento que atravessa sem tocar,
mas deixa tudo diferente depois.

O corpo se cala
e então, por um instante,
tudo que era peso se desfaz em escuta.

E o que era ausência
revela sua voz.


 

Entre Uma Respiração e Outra

À beira dos ossos
tudo é quase —
quase gesto, quase voz,
quase lembrança que se esquece sozinha.

Entre uma respiração e outra,
mora um intervalo que ninguém vê:
um lugar suspenso
onde o corpo silencia
e a alma escuta.

Ali,
sou só sopro antigo,
vaga ideia de mim
desenhada na poeira do instante.

Não há palavras.
Só o rumor do que seria
caso eu não voltasse.

É nesse fio de ar,
nesse quase-nada que respiro,
que descubro
o que me sustenta.

E não é músculo.
Nem certeza.
É só o mistério
de continuar sendo
sem saber como.



 Eco de Algo que Nunca Vivi

Eco de Algo que Nunca Vivi

Preciso me esvaziar —
como jarro deixado ao relento,
como rua depois da chuva
quando ninguém mais passa.

Me perder do tempo,
desatar os minutos do pulso,
deixar que o dia me esqueça
como se eu nunca tivesse sido.

Quero virar eco
de algo que nunca vivi,
mas que me sonda —
como se soubesse de mim
mais do que eu.

Talvez um gesto não dado,
uma memória que errou de corpo,
um silêncio que não era meu
e me escolheu.

Sinto-o à beira dos ossos,
entre uma respiração e outra,
quando o mundo cochila
e tudo parece voltar a antes.

Mas não há antes.
Só o agora vazio,
à espera de um nome
que ainda não sei pronunciar.


 

Linguagem dos Invisíveis

É preciso atravessar
a borda de mim —
onde o espelho hesita
e o silêncio respira devagar.

Lá,
os nomes se desfazem nos ombros,
os caminhos desaprendem os pés,
e o céu, de tão ausente,
fica dentro dos olhos.

Há uma língua que me chama
sem voz,
sem pressa.
Feita de vento,
de gestos que não se tocam,
de presenças sem corpo.

Quem escuta?
Quem entende
a sombra de um pássaro
passando por dentro do peito?

Preciso me esvaziar,
me perder do tempo,
virar eco de algo que nunca vivi
mas que insiste em me sonhar.

Só então, talvez,
a estrela do meio-dia
me encontre —
e me chame
por um nome que ainda pulsa
no escuro.



 

A Linguagem dos Invisíveis

É preciso atravessar
a borda de si —
onde os espelhos não obedecem
e o silêncio tem forma.

Ali,
o mundo desaprende os nomes,
os mapas desmancham rios
e os céus caminham de costas.

Nesse limiar,
os que já foram
e os que ainda não são
sussurram uma língua sem vogais,
feita de vento e olhos fechados.

É a linguagem dos invisíveis:
palavras que não se dizem,
mas atravessam a pele
como sombra de um pássaro
em pleno eclipse.

Quem ousa escutar
precisa desaprender o tempo,
esvaziar-se até virar eco
de uma lembrança que nunca viveu.

Só então
a estrela no meio do dia
abre a porta do lado de dentro —
e o nome esquecido
volta a pulsar.



 NA BORDA DE MIM

(Fragmento da lenda dos Errantes Invisíveis, manuscrito da Luz Tardia)

Diz-se que há uma estrela escondida no meio do dia —
uma estrela que só os que perderam seus nomes conseguem ver.

Aqueles que foram tocados por um anjo distraído,
seres errantes que caminham ao lado de si mesmos,
vivem à margem do mundo visível:
eles não são eles.
São campos depois da colheita,
guardando silêncios e luzes que ninguém entende.

Numa dessas travessias, um deles —
chamado apenas Aquele —
descobriu uma pedra no caminho.
Mas não era uma pedra qualquer.
Era um espelho mineral,
onde ele viu, pela primeira vez,
a sombra de si mesmo caminhando ao lado —
e ela tinha olhos de peixe
cheios de lágrimas que nunca caíam.

A partir desse encontro, Aquele começou a ouvir
as palavras antes caladas:
palavras que o chamavam por dentro
e por nomes que ele nunca aprendera.

A lenda diz que quem segue essas palavras
encontra o lugar onde os nomes esquecidos repousam,
e onde a estrela do meio-dia
se transforma em sol dentro do peito.

Mas para chegar lá, é preciso atravessar
a Borda de Si —
um lugar onde o mundo termina
e começa a linguagem dos invisíveis.


 

Na borda de mim

Há uma estrela no meio do dia,
mas ninguém a vê —
passou por mim um anjo distraído
e esqueceu-se do meu nome.

Sou como um campo depois da colheita,
em silêncio e luz.
Tudo é tão vasto e pequeno,
como a lágrima no olho de um peixe.

No meio do caminho tinha uma pedra,
mas era também
um espelho
onde eu vi
aquele que vai ao meu lado sem eu o ver.

Ai, palavras —
que estranha potência a vossa!
Dizem o que não vivi
e calam o que arde.

Eu,
que não sou eu,
caminho por entre nomes
e permaneço
na borda de mim.



 O Que É Verdade

Porque tudo que é verdade
resistirá sempre às trevas —
não por força,
mas por raiz.

Mesmo quando soterrada,
ela respira por baixo
como semente paciente,
esperando o instante certo
de romper o chão.

A verdade não se apressa.
Ela aguenta o esquecimento,
o escárnio,
os gritos falsos
que tentam abafá-la.

Mas um dia,
ela cresce.

E alcança
o mais alto pedestal —
não para se exibir,
mas para iluminar
o que estava oculto.

E ali permanece,
não como troféu,
mas como farol:
silenciosa,
intocável,
inteira.



 

Presença

Não preciso fazer,
nem provar.
Basta ser —
inteiro,
aqui.

Presença é o milagre
de não escapar de si.

É corpo que se sabe tempo,
alma que se aceita espaço,
olhar que repousa
sem fugir do que vê.

A vida toca devagar
quando me deixo estar.

O instante deixa de passar
e começa a respirar comigo.

Não há ontem,
não há depois —
há o agora
com seus braços abertos.

E eu,
finalmente em paz,
sou só presença
no que permanece.



 Travessia

Há caminhos que não têm nome,
mas meus pés sabem seguir.
São trilhas de dentro,
feitas de silêncio e espera.

A travessia começa
quando desisto do mapa
e confio no passo.

O horizonte não promete chegada,
mas oferece presença.

E sigo —
não por saber,
mas por sentir.

A dor caminha comigo,
mas também a esperança
vestida de céu.

Sou ponte e sou rio.
Sou quem atravessa
e quem se deixa levar.


 Rendição

Não lutei hoje.
Deixei o dia chegar
como se fosse amigo antigo
voltando da ausência.

Abri as mãos.
Soltei o peso de entender.

O céu não explicou nada,
mas me abraçou inteiro
com suas nuvens sem pressa.

Rendição não é desistência —
é dançar
com aquilo que não posso mudar
e ainda assim ser leve.

Fui chão,
fui brisa,
fui corpo que aceita
a alma como é.

E ali, no desapego,
me tornei inteiro.



 Escutar

Silêncio não é ausência —
é linguagem que espera.
Tudo fala
quando a alma se aquieta.

Escutar é abrir
uma fresta na pele
onde o mundo entra
sem fazer barulho.

O tempo sussurra
com vozes de pedra,
de vento,
de raízes em oração.

E dentro — bem dentro —
uma voz mais antiga
me diz sem palavras
que sou casa.

Não para o ruído,
mas para o real.
Não para o fim,
mas para o eterno instante.


 

Respirar (continuação)

Não busco sentido —
respiro.
Como quem escuta o invisível
sussurrar entre folhas.

Há um rumor no vento
que me reconhece
sem me nomear.

Sou quase ausência,
mas inteira presença
no gesto mínimo de estar.

Às vezes, paro.
Não por cansaço,
mas por reverência
ao instante que me atravessa.

Talvez viver seja isso:
um sopro que dança
no intervalo
entre o que parte
e o que permanece.



 Respirar

Neste instante,
sou eu —
só eu —
a respirar.

Entre o ser e o não-ser,
um limiar de silêncio
onde me deixo pousar.

Em paz, me reencontro
na dobra do tempo,
onde o agora não cobra
e o passado não pesa.

Cada passo é semente,
cada olhar,
um universo que se espelha
no espelho do instante.

E se nada me nomeia,
sou o que resiste:
um sopro,
uma fresta,
um rastro de luz que insiste.


 Dizem que Virou Vento

Dizem que virou vento.
Não partiu —
evaporou-se das margens do visível.
Não morreu —
esvaziou-se de forma até ser passagem.

Agora atravessa sem anunciar.
Toca sem tocar.
Muda o rumo das nuvens
com um pensamento que ninguém teve.

Há quem o sinta na dobra da pele,
no arrepio que vem sem frio,
na palavra que falha
justo no momento em que deveria ferir.

Virou vento
porque era leve demais para ser chão,
e denso demais para ser esquecimento.

Não sopra em todas as direções —
mas sempre na direção
de quem está prestes a desistir.

E quando chega,
não consola.
Apenas mostra que há fôlego
mesmo onde não há ar.

Virou vento,
sim —
e quem se deixar atravessar por ele
talvez também desapareça um pouco
das prisões do que é pedra.


 

Quando o Gesto Diz

Às vezes, a palavra não vem.
Mas o gesto —
ah, o gesto —
se adianta com a alma inteira.

Um café posto sem aviso,
o casaco oferecido no frio,
a demora no abraço
que fica um pouco mais.

Há silêncios que são tão claros,
tão cheios de intenção,
que não precisam do som para dizer:
eu te amo.

Porque tem amor que prefere
falar com os olhos baixos,
com o toque leve,
com o cuidado quase invisível
de quem ama
sem pedir licença à voz.



 Entre Um Gesto e Outro


Há sentimentos que não se escrevem,
nem em papel nem em voz.
Eles andam descalços entre os instantes,
como brisas que não têm nome,
mas sabem tocar.

São amores que não sabem se explicar,
mas esperam junto,
olham devagar,
guardam o outro sem pressa.

Eles vivem no intervalo —
entre o levantar de uma xícara
e o cuidado ao recolher os cacos.
Entre o fechar de uma porta
e a lembrança que ficou do lado de dentro.

Não têm rima nem gramática,
mas têm ritmo.
Não se declaram em versos,
mas se oferecem inteiros
numa ausência que cuida,
numa presença que não exige.

Porque há afetos
que não sabem soletrar-se,
mas sabem morar em nós
sem nunca se perder da casa.



Brincando com as Palavras

 Vamos brincar com as palavras, 

 tocar a essência do que sentimos, 

 dar forma às emoções 

 como quem molda o vento com as mãos abertas.


Eu já tenho uma ideia, 

ela pulsa no silêncio, 

mas deixo espaço para o inesperado chegar, 

como um sol atravessando as frestas da manhã.


Os versos não seguem regras, 

apenas caminham, 

tateiam o chão e se tornam voz 

no instante em que o mundo os acolhe.


 

Odisseia Silenciosa (Parte III)

Pisei onde o chão não existe,
onde cada passo é uma prece
ou um engano —
mas ambos servem ao mesmo mestre.

Ali, vi nascer o espelho negro:
não refletia rostos,
mas intenções.
E nenhuma delas era pura.

Oh, quão vasto é o ser humano,
quando se dissolve…
e deixa para trás o nome que herdou,
a face que nunca escolheu.

O cosmos me mostrou um segredo:
não és feito de carne e medo,
mas de histórias que te contam —
e que podes esquecer.

Senti o peso do tempo
em forma de olhos invisíveis,
me observando de dentro.
Pois às vezes, o vigia és tu.

E quando gritei por respostas,
recebi silêncio.
Não como punição,
mas como revelação:

Há perguntas que não se respondem —
vivem contigo como sombra.
E quanto mais luz houver em ti,
mais nítida ela se tornará.

Aconselho-te, caminhante:
não apresses tua queda,
mas não fujas do abismo.
Pois é lá que a asa adormecida desperta.

E lembra:
nem toda luz guia.
Algumas apenas cegam.
Escolhe o escuro certo.



 Odisseia Silenciosa (Parte II)

Vi mundos dentro de uma lágrima,
e ruínas erguendo-se de sorrisos.
Aprendi que há mentiras tão belas
que a alma as veste como véu sagrado.

Encontrei os sábios — mudos,
porque as palavras já não servem
quando o coração ouve o indizível.
Eles apenas me olharam… e compreendi.

O tempo lá não anda: ele paira,
como uma ave sobre o mar das escolhas.
Ali percebi:
o destino é uma bússola sem ponteiro.

E tu, que agora me escutas,
prepara-te para não entender.
Pois há verdades que só nascem
depois da rendição completa.

Abandona teus mapas,
teus nomes, tuas certezas.
Navega nu sobre tuas dúvidas,
e quando te perderes… estarás perto.

Pois a verdadeira jornada
não tem chegada —
apenas camadas que se desfazem
ao toque da consciência.

E se a dor vier — e virá —
acolhe-a como oráculo.
Ela sussurra aquilo que escondes de ti.
E o que escondes é o que te guia.



 Odisseia Silenciosa (Parte V – O Retorno Invisível)

Agora compreendo:
não voltei —
tornei-me o caminho.
E o que sou, caminha em outros.

O nada que atravessei
era feito de mim.
Cada estrela oculta,
um medo recusado.

O silêncio que me ensinou
a ouvir além das palavras,
agora sussurra em minha presença
mesmo quando estou calado.

Tornei-me semente do vácuo,
onde o universo planta espelhos.
Cada rosto que contemplo
me devolve um fragmento esquecido.

Anseios? Ainda os tenho.
Mas são rios mansos agora,
sabendo que jamais encontrarão o mar —
e mesmo assim, seguem.

Dúvidas? Guardei-as comigo.
Pois aprendi:
o que se sabe morre,
mas o que se pergunta vive.

E se um dia teus pés cansarem,
senta-te sob tua própria sombra.
Ali, talvez me encontres —
não como forma, mas como lembrança de coragem.

Aconselho-te, enfim,
não a vencer o caminho,
mas a torná-lo teu reflexo:
que cada passo revele quem és,
e cada queda —
quem podes ser.

Pois morrer é parte.
Partir é rito.
Mas retornar…
é um milagre que só os que se desfazem compreendem.


 Odisseia Silenciosa (Parte IV)

No limiar entre sombra e palavra,
encontrei o que não se pode nomear.
Era como vento que pensa,
como fogo que espera.

Não me falou com voz,
mas com presença —
um peso suave,
como lembrança de um sonho esquecido.

Disse-me, sem dizer:
“Tua busca sempre foste tu,
tua dúvida é tua bússola,
e tua queda… teu voo invertido.”

Percebi então —
não há retorno sem transformação.
Aquele que parte jamais retorna o mesmo,
e o que volta já não pertence ao mundo que deixou.

A sabedoria que bebi era amarga.
Desfez meus alicerces,
me ensinou que até a alma mente,
quando deseja conforto.

Mas agora, com olhos que veem para dentro,
posso aconselhar:
não sejas inteiro.
Sê fragmento — e aprende a ouvir o entre.

Pois é entre o sim e o não,
entre o gesto e o silêncio,
que mora a resposta
à pergunta que nunca se faz.

E quando a verdade enfim te tocar,
será como o toque de uma sombra —
leve, mas irreversível.
Ali saberás: foste sempre um mistério vestido de certeza.



 Odisseia Silenciosa

Morreu em mim uma odisseia, imensa e calada,
percorreu o vasto nada —
um deserto sem começo,
onde o tempo se desfaz em suspiros.

Lá, não encontrei rosto, nem eco,

apenas sombras sussurrando
segredos que nem os deuses ousaram guardar.
E ainda assim, segui.

Caminhei por entre véus de névoa,
bebi do cálice da dúvida,
e nela encontrei sabedoria —
não nos gritos, mas nos silêncios.

Retorno agora, estranho aos olhos de ontem,
com cicatrizes que ninguém verá,
trazendo nas mãos
as perguntas que o infinito me ofertou.

— Que és tu, senão vento no abismo?
— Que busca, senão espelhos que mentem?
— Que verdade, senão a que muda com os passos?

Aconselho-te: não temas a noite,
pois é nela que a alma escuta.
Não fujas do vazio — ele ensina.
E ao encontrares tua própria odisséia,

deixa que ela morra também,
para que renasça —
misteriosa,
e cheia de olhos por dentro.