19 maio 2006

SURVIVE 3D - KARIN KUHLMMAN


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Essa tem copyright:

Title: Survive - Karin Kuhlmann 1998 - Digital 3D picture, 3D-Computer Graphic
Technique: 3D-scenery, created with Poser and Bryce, digitally edited and worked out with Adobe Photoshop.

Continue aqui: http://www.karinkuhlmann.de/DigitalWorlds/3D-Images/Survive2/survive2.html
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13 maio 2006

SE TIVER... EU PREFIRO

e tiver macarronada
com sabor de domingo
com pedaços de queijo
parmesão
e molho
e puder ser família
e recolher todos os cacos de sonhos em mim
desses que sempre quis ter
tive
mas não retive
por quebradiços que foram
eu prefiro.
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Vicente
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12 maio 2006

ELA E A CIDADE

e o peito estava aberto
a se fazer ouvidos para ouvir
como em qualquer audição.
atento aos sons
(do todo e do fragmento).
foi assim que começou.

sei que estava confuso
mas havia um doce equilíbrio
entre olhos e paisagem
e rosto
e mapa da cidade.

compreendi seus cabelos molhados
seus acessos
suas esquinas
suas ruas
um pouco nuas
outro pouco iluminadas.

percebi seus excessos de menina
seus troncos e entroncamentos
suas escadas rolantes
seus montes
seus olhares intensos
seus castelos
seus congestionamentos.

não tive como evitar:
suas curvas prediletas
seus policiais sempre atentos
que me afastavam dela
e da cidade dos sonhos que era dela
que saía e que voltava para ela.

Vicente
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"O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler.
(Mark Twain)

05 maio 2006

03 maio 2006

A FUGA

O dia pode ter sido qualquer um, mas parecia que se parecia com uma sexta-feira. Tratava-se de uma sexta. Pegajosa e renitente. Embolorada e cheia de ranhuras na superfície. Foi nesse dia que ela fugiu do quarto-e-sala. Sentia-se vazia como uma esteira de praia em inverno com frente fria. Sua casa sempre lhe parecera fria, calculista, arredia, doentia. Deitara-se com as dores que a cabeça lhe emprestara desde que chegara da rua. Talvez tivesse adormecido profundamente. Talvez apenas ressonara.
Acordou e levantou a contragosto. Da janela escancarada divisou a cidade de cinza e frio.
Saiu descalça, pisando em cacos partidos dentro de si mesma. Saiu por aí a esmo, sentindo-se lerda de pensamentos paridos com esmero por uns sentimentos inexplicáveis. Quando se deu conta já encarava a boléia da rua descalçada. E havia vento, chuva, pedra e trovoada. Pilotava a contragosto seus passos descompassados.
Logo ali, depois do meio-fio, havia a avenida, havia a floresta feita de casas e asfalto e pontes, e viadutos, e farmácias, e vidraças, pensava que naquele lugar seus sentidos estariam à prova, à mostra, à vontade. Porque ali moravam todas as feras, imaginava.
Bateu os pés e não era de pirraça, ajoelhou-se no tombo doído de ferir joelhos e alma, e moral e percebeu-se tão sem-graça. Rezou, de joelhos sangrando, aos seus anjos e quase não se abriu em choro, mas não agüentou e chorou: todas as suas lágrimas, todas as suas mágoas, todas as suas pragas. Rezou aos santos guerreiros que estavam à sua volta, que se ocultavam nas dobras das suas roupas ou nas contas dos seus terços e colares. Rezou de mãos postas às suas santas benditas e esclarecidas que lhe esclareceriam se quisessem, mas não quiseram. Rezou que se fizessem presentes em fios de luz e calor naquela hora e se mostrassem perdulários com milagres diante da sua desdita.
Rezou para que se mostrassem rápidos e não a deixassem sobrecarregada com seus medos, seus temores, suas crenças sem entraves, que a libertassem de seus padecimentos mais graves, de suas grades interiores, que chegassem leves e a deixassem sorrindo em breve.
Por ter deixado tudo pra trás sentiu-se aliviada e liberta, livre e ligeira, ligeiramente liberada. Sorriu de si mesma e nem estava angustiada ao fazer sua última descoberta: vivera sempre presa numa cachoeira impensável de lágrimas e isso não a levara a nada.
Essas coisas chegando amiúde em sua mente, forçavam-na a adivinhar o que não ousava acreditar, porque não tinha coragem do gesto. Foi então que finalmente encontrou seu “eu”. Fortaleceu-se na falta de apoio que lhe ferira, mas tentara se fortalecer e se imaginou em toques que alguém lhe dera. E trocou o tempo verbal e pensou que alguém lhe deu (os toques) nos cabelos e era apenas uma quimera, um sonho, um ganho, uma perda, uma falha na mente incoerente.
Sonhara sonhos abstratos de toques concretos pela pele, pelo corte e pelos pêlos, pelos tantos despropósitos que passou, que viveu em vão, pelos nervos de ferro e pedra, pelos cubos de gelo que jamais deixaram de atingir seu coração.
Ousara pensar na fuga. Fugiu. Correu. Olhou. Parou. Pensou. Quando fugiu, correu de si mesma e não se encarou, não olhou pra trás. Correu, sentindo-se nua quando estava agasalhada, de saia e blusa e cachecol. E tinha luvas. E tinha botas. Mas estava descalça a se encarar em seu espelho quebrado.
Seu melhor utensílio estava a lhe esperar na praça e haveria de ser um cadafalso, também uma corda, um laço, uma trave, um espaço em branco embaixo da trave, um baque, um estalo, um abafo insosso no pescoço.
Ela ficara a imaginar porque se sentou em frente ao seu próprio cadafalso, sem perceber que estava ali na rua.
Se é fuga, perguntava-se, porque estava correndo de si mesma? Talvez para encontrar e desfrutar do seu próprio olhar. Olhar de esperança e de carinho, de se imitar um beijo, ou dois, ou três e até mais. Até se sentir olhada, acariciada, beijada de se enfastiar. Até descobrir sentidos para todas as suas reclamações. Até encontrar dentro de si um pouquinho de paz.
Suas vontades não eram de choro, porém de resistência. Mas deixou que ele chegasse sem resistir. E veio um choro que saiu em lágrimas, aos borbotões. Seus olhos, por vontade própria, se sentiram vazios das piedades, dos ressentimentos, dos cosméticos, dos bordões. Não havia, ali, qualquer sombra de iniqüidades.
As lágrimas corriam céleres e, como chuva, encharcavam o corpo doído, queimavam a alma, ardiam em ânsias de se encontrar. Quebravam o silêncio com um gemido espremido. E não se conteve: gritou como ostra para que se fizesse notar.
De pé sobre o piso frio já não havia dúvida quanto à decisão que deveria tomar. Balançava entre a renúncia e a astúcia, entre o querer e o desistir. Havia uma decisão e nem ela mesma sabia. Havia uma decisão desde sempre, desde que atravessara a soleira da porta, descendo escadas, alcançando a rua, correndo descalça, sentando na praça.
Queria ouvir seus passos atravessando a avenida, isso é certo. Queria perder-se em avenidas e poças e pregar peças na vida.
Seu olhar encontrou o vazio do pulo. Até o corrimão sentiu-se penalizado. Transtornada fez seu rumo inalcançável: calçada, amurada, pulo, vontade vencida. Não haveria volta. Não haveria mais nada. Estava afastada. Estava perdida.
E o salto, ressalte-se, não era assim tão alto, pouco mais que poucos metros acima das cabeças que passavam despercebidas, despreocupadas. Tanto que o baque surdo de corpo no asfalto, de corpo leve caindo, despencado, não foi ouvido nem mesmo pelas redondezas de camelôs, mendigos e que-tais. Somente ali poderia ser notada. Além e aquém do seu mundo de incertezas, com toda certeza.
Seu pulo só foi acompanhado por dois ou três garis que estavam a poucos metros dali, esperando a condução para os trabalhos forçados do dia-a-dia.
Havia sangue, mas a mancha, se fosse bem trabalhada, dava pra ser disfarçada. Foi encontrada envolta em denso silêncio sem flores, e tudo à volta estava molhado daquela garoa fina que estuprava a cidade. Havia se afogado em sonhos a poucos metros do nada, que era o destino da sua fuga desesperada.
Em sua homenagem talvez, por se chamar Maria, ou até mesmo por ser o horário mais propício, os sinos da catedral iniciaram o badalar das seis horas, enquanto o serviço de alto-falantes iniciava a melodia suave que encheria a avenida, a ponte, a calçada, a alma, a calma, a varanda, a zanga.
Sua cabeça ainda lhe doía quando, ao som do primeiro ou do segundo toque, acordara, meio satisfeita, meio contrariada. Seu corpo estava suado. Que pesadelo horrível, pensava. Vou tomar um banho e me esconder do frio.
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Vicente
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"Em cada um de nós há um segredo, uma paisagem interior, com planícies invioláveis, vales de silêncio e paraísos secretos."
(Saint-Exupèry)